MÚSICA EM FOCO - Sobre "Cássia Eller, o musical"


Cássia Eller, o musical: uma experiência

POR TALITA GUIMARÃES



Começa com um por um dos músicos da banda surgindo das laterais do palco e acomodando-se aos seus instrumentos: violões, guitarra, baixo, bateria, piano, sanfona. Em seguida, acordes de guitarra soam a vinheta de abertura. O baixista à direita se levanta, ergue os braços e saúda a plateia com o emblemático símbolo rock and roll da mão chifrada. A música cresce e o elenco vai entrando em cena dançando e se cumprimentando. O instrumental de Do lado do avesso (Cássia Eller) chega ao seu ápice no momento em que as luzes são reduzidas e irrompe no palco uma figura esguia, de violão pendurado e um corte de cabelo moicano. Tudo acontece muito rápido: a artista caminha entre os músicos, toca interagindo com eles até que o som cessa quando ela para ao microfone e com as luzes fechadas só nela entoa os primeiros versos de Lanterna dos Afogados (Herbert Viana) à capela. A voz, o porte, as vestes. Nada deixa dúvidas: Cássia Eller está diante de nós.

Assim começa Cássia Eller, o musical apresentado em São Luís pela primeira vez entre os dias 08 e 10 de julho no Teatro Arthur Azevedo. O espetáculo de mais de duas horas de duração, que estreou nacionalmente no Rio de Janeiro em 2014, tem Direção de João Fonseca e Vinícius Arneiro com Texto de Patrícia Andrade, Direção Musical de Lan Lanh, Codireção Musical de Fernando Nunes, Design de Luz de Maneco Quinderé, Figurino de Marília Carneiro e Lydia Quintaes, Direção de Movimento de Márcia Rubim, Cenografia de Nello Marrese e Natália Lana, Visagismo de Beto Carramanhos e Produção de Elenco de Cibele Santa Cruz. Grande parte da equipe técnica formada por pessoas próximas à trajetória da artista homenageada.


Para contar a história de uma das vozes femininas mais importantes da música brasileira, o espetáculo passeia pela vida da cantora desde os tempos de adolescente tímida e introspectiva, que vivia trancada no quarto dedilhando os mesmos acordes ininterruptamente no violão recém-ganhado, passando por suas primeiras experiências amorosas, o espanto da família com sua orientação sexual, a mudança para Brasília, o ingresso no teatro até o envolvimento efetivo com o cenário musical na capital federal e a chegada ao mercado fonográfico através do primeiro contrato com a gravadora Polygram, em São Paulo. Na sequência, o musical deslancha por sua carreira fenomenal, embora curta, pois cessada pela morte precoce de Cássia com apenas 39 anos, em 2001.


Todas as experiências da artista, da menina solitária à mulher admirada e assediada, são contadas com delicadeza e humor. O texto de Patrícia Andrade privilegia um registro muito respeitoso dos acontecimentos marcantes da trajetória da artista. Com ágil dramaturgia, os diálogos e movimentos no palco são muito bem coreografados fazendo uso de pouquíssimos elementos cênicos para apoiar a atuação, que conta com nada menos que a execução ao vivo de trinta e oito canções, entre vinhetas e músicas completas. Os atores, afinados e afiados, se alternam entre personagens, chegando o mesmo ator a interpretar até cinco pessoas diferentes da vida de Cássia Eller.


E se o ótimo elenco escalado prepara muito bem o ambiente para a história a ser contada e cantada, não há como deixar de mencionar a arrebatadora atuação da curitibana Tacy de Campos no papel de Cássia Eller. Da primeira aparição à despedida do palco, Tacy transpira Cássia em timbre, comportamento e trejeitos idênticos ao da cantora. De imediato arrepia ouvi-la cantar, assim como emociona vê-la no palco caracterizada com um figurino que reproduz as vestimentas usadas pela artista ao longo da carreira. Da famosa camiseta cinza da capa do álbum Com você meu mundo ficaria completo (1999), à faixa vermelha nos cabelos, os bermudões e casacos xadrez. Tudo na preparação de Tacy honra o imaginário que ficou de Cássia Eller.


A decisão acertada para a escolha da intérprete está ligada à sua escalação envolta em um processo não-convencional de seleção, em que Tacy, que até então não trabalhara como atriz, mas cantora nos palcos curitibanos, chegara à produção através de um vídeo no youtube. Reconhecido seu potencial para o musical, a cantora que sequer se inscrevera, fora convidada a fazer o teste. Conta-se que logo na audição, a simples presença da candidata com sua timidez muito parecida à de Cássia já fora suficiente para emocionar a equipe técnica que encontrou nela um talento a ser revelado, tal qual o projeto intencionava além de homenagear Cássia. 


Dentre os momentos musicados mais marcantes do espetáculo, destacam-se os duetos entre mãe e filha, quando Cássia e sua mãe Nanci (vivida pela ótima Juliane Bodini) conversam sobre a capacidade do amor conduzir as decisões que as pessoas tomam ao longo da vida e cantam juntas Noite do meu bem (Dolores Duran); o belíssimo duo para Palavras Ao Vento (Moraes Moreira e Marisa Monte) feito por Cássia e sua companheira Maria Eugênia, interpretada com precisão pela afinadíssima Eline Porto; o solo de Cássia só voz, violão e luz para a clássica Por enquanto (Renato Russo); novamente Cássia e 'Geninha' desta vez numa das cenas mais bonitas do musical, em que o casal canta 1º de julho (Renato Russo) para embalar a gestação de Cássia, que não por acaso resulta em uma sequência de cenas delicadas com a cantora amamentando o filho Francisco, a quem carinhosamente chama Chicão. É possível, inclusive, que 1º de julho  somado à Todo Amor que Houver Nessa Vida (Cazuza/Frejat) cantado por Cássia, Maria Eugênia e Nanci representem os mais emocionantes encontros de forças femininas em cena, seja com o verso "Eu quero a sorte de um Chicão tranquilo..." que já de início transborda ternura numa interpretação suave como uma canção de ninar, quanto no manifesto "...sou fera, sou bicho, sou anjo e sou mulher/ sou minha mãe/ minha filha/ minha irmã/ minha menina/ Mas sou minha, só minha/ e não de quem quiser", da canção-presente composta por Renato Russo para a família de Cássia.


Quando chega a vez de cantar Malandragem (Cazuza/Frejat), já no auge da carreira, Cássia desce do palco e divide o microfone com a plateia que canta a plenos pulmões um de seus maiores sucessos. E aqui cabe confessar que assisti duas sessões do musical (a das 21h do sábado 09 e a das 19h do domingo 10/07) e nas duas a plateia soltou a voz, ainda que com certa timidez quando o microfone se aproximava muito. (E sim, nas duas chorei mais de uma vez.)


Seguindo a narrativa, Cássia se desentende com o produtor que propunha espetacularizar a turnê com uma estrutura que não agradava a artista, adepta da simplicidade em um palco próximo ao público, de onde ela conseguisse olhar as pessoas nos olhos. Em resposta, a música interpretada na sequência é Nós, do maranhense Tião Carvalho, numa arrepiante formação com voz e três violões. E nesse sentido, vale muito louvar a competente banda que sustenta todo o musical, formada por Felipe Caneca (piano e sanfona), Diogo Viola (guitarra, violão e bandolim), Pedro Coelho (baixo), Mauricio Braga (bateria) e Fernando Caneca (violão). Os músicos tocam quase que ininterruptamente sem esmorecer, interagindo com o elenco de forma orgânica, integradíssimos ao espetáculo no palco. E se esse comentário pode parecer óbvio, fica aqui o alívio por não descobrir a banda escondida no fosso da orquestra, portanto distante da ação, como infelizmente poderia acontecer.


Após pouco mais da metade do musical conhecemos como se dá a chegada da percussionista baiana Lan Lanh, vivida por Thainá Gallo, à vida de Cássia. Convidada pela própria Cássia para integrar a banda numa turnê, Lan Lanh e a artista logo se identificam muito, cultivando grande amizade e amor dentro e fora dos palcos. Outro parceiro musical importantíssimo cuja relação com Cássia foi também a de um grande amor é o cantor e compositor Nando Reis, interpretado pelo versátil Emerson Espíndola, um dos atores que mais se alterna entre personagens em cena dando vida a Ronaldo, Marcelo Saback, Elder, um executivo da Polygram e Nando Reis. Esforço que deve ser levado em consideração antes de criticar a pouca semelhança de sua voz com a de Nando, o que não prejudica em nenhum momento a força de suas cenas com Tacy. Aliás, responsáveis por muitas lágrimas adicionais, sobretudo quando protagonizam a cena mais doce do espetáculo: após se conhecerem e cantarem belamente Relicário (Nando Reis), composição que Nando leva para Cássia pois crê ser a sua cara, Cássia dispara que quer gravar um disco só com músicas dele, ao que o rapaz, tão tímido quanto a nova amiga, alerta que não seria bom para a carreira dela afinal acabara de gravar um álbum só com composições de Cazuza no repertório. "Me produz!", Cássia insiste e então Nando considera melhor essa possibilidade pedindo que os dois se encontrem antes na casa dela e tirem umas músicas no violão para ver no que dá. Já visivelmente encantada com o novo parceiro, Cássia pergunta se ele irá mesmo lhe visitar. "Vou sim!". "Amanhã?". "Todo dia!", Nando sorri e ganha um coração desenhado no ar com as mãos da moleca Cássia Eller que sai correndo em seguida, deixando-o sozinho no palco com cara de apaixonado. "Estranho seria se eu não me apaixonasse por você..." é inevitavelmente a fala musicada que vem na sequência, com o retorno de Cássia para que os dois sentados a beira do palco troquem olhares, comparem seus famosos tênis e vivam um momento de afeto mútuo, com Cássia beijando furtivamente a bochecha do amigo enquanto ele canta All Star (Nando Reis) para ela.


Devido o longo tempo passado, já se prevê que o musical se aproxima do fim. Vemos então uma Cássia angustiada com a fama e o assédio, cansada com o exaustivo ano de 2001, em que fez quase uma centena de shows em poucos meses. Estafada, a artista demonstra inquietação e irritação para a companheira e os amigos. Lan Lanh pede para a que a banda maneire nos excessos a fim de ajudar Cássia a cuidar da saúde. Tenta inclusive impedir a amiga de sair tarde da noite para beber, alegando preocupação.


A sós com Maria Eugênia, Cássia desabafa sobre o cansaço, mas também sobre não querer deixar os músicos na mão suspendendo a agenda intensa, que incluiria uma turnê internacional no ano seguinte. E então as duas combinam de descansar com Chicão pelo menos após o show do réveillon no Rio. Cássia se levanta, caminha em direção à plateia e mirando o horizonte dirige-se ao filho. Pede que ele se comporte e obedeça à mainha Eugênia, que logo Cássia estará de volta. Lança um beijo no ar e sai de cena. 


Segundo Sol raia nas vozes do elenco, que pouco a pouco retorna ao palco com a expressão dura de quem vê um ciclo ser encerrado "sem explicação", como canta a letra da música de Nando Reis. Todas as luzes caem até unirem-se na cadeira vazia no centro do palco. É possível sentir, com nó na garganta e um aperto no peito, que Cássia partiu. Desfecho narrativo belíssimo e sensível sobre uma partida precoce que chocou o país e ainda hoje, passados 15 anos, é difícil de acreditar. Talvez porque a passagem de Cássia pela Terra tenha sido tão intensa e importante que não tenha simplesmente passado como coisa que finda. Sem premeditar, sua união estável com Maria Eugênia, por exemplo, garantiu após sua partida e com alta repercussão a pioneira decisão judicial de conceder a guarda de um filho à companheira, no caso de um casal do mesmo sexo. Avanço que abriu portas legais para muitas outras famílias brasileiras. Além, é claro, de toda relevância de seu trabalho musical plenamente alinhado com seu enorme talento e personalidade. No documentário Cássia (2014), dirigido por Paulo Henrique Fontenelle, é possível acessar detalhes importantes sobre a trajetória da artista que por uma decisão artística, não caberiam ao musical retratar. Nesse contexto, o DOC funciona com um ótimo complemento informativo ao belíssimo musical. Afinal, Cássia Eller, o musical é mais que um espetáculo teatral musicalmente intenso (a decisão de não haver intervalo com um grande repertório sequenciado foi proposital por parte da Direção Musical assinada por Lan Lanh, cuja intenção era fazer parecer um show mesmo). Trata-se de uma experiência. A de - para muitos, que como eu lamentavelmente não tiveram a chance de ir a um show - viver a sensação de ser tocado ao vivo pelo som e o vigor de Cássia Eller.


Porque no fim das contas, tanto o musical e o documentário quanto as homenagens que de tempos em tempos se fazem a Cássia (a maior e mais recente delas na última edição do Rock in Rio, em 2015) reforçam o quanto sua energia vital ainda está entre nós. O que definitivamente me faz pensar que a vida, essa força pulsante que nos anima a seguir em frente, nunca vai embora de fato.

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EXTRA - Para entender mais sobre minha relação pessoal com a obra de Cássia Eller, leia a crônica Serginho, Cássia e eu, publicada na coluna semanal que escrevo e ilustro para o Armazém de Cultura, que a propósito está de aniversário em julho com um conteúdo especial e sorteio! 


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NOTA.: A Produção do musical não permitiu fotografar nem filmar o espetáculo, por isto o texto veio sem imagens. 

Comentários

Renata Teixeira disse…
Eu não vi esse musical. Pensei em ver, mas acabei não indo. Um pouco por culpa do doutorado - que consome demais da minha vida - , um pouco por procrastinar tudo nessa vida :-(
Fiquei emocionada com a escolha da atriz curitibana. Não conhecia a moça e fui correndo no Google para ver a carinha dela.
Não posso deixar de expressar a minha admiração por você também respeitar os avisos de não captar som e imagem. Talita eu fico possessa com a falta de educação brasileira de fingir que não ouviu esse aviso no inícios dos espetáculos. Super orgulhosa de você!

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